Um dia, um adeus...
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<div align="left"><em>“É tão estranho, os bons morrem jovens<br />
Assim parece ser, quando me lembro de você<br />
Que acabou indo embora, cedo demais...”</em></div>
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<p>Era uma noite festiva de inverno num clube da cidade. No palco, a Banda Azul de Quixadá animava a multidão. De paquera do lado, eu perambulava por entre a galera. “Vou ao banheiro”, disse-me ela. Nunca mais voltou. Continuei vagando solitário e eis que me aparece aquela figura: Cabelos ondulados, rosto angelical, copo na mão. Aceita uma bebida? “claro”, respondi. Quer dançar comigo? Gelei dos pés à cabeça. Os homens sempre gelam quando passam de caçador à caça, principalmente eu, que nunca aprendi a dançar. Mas nunca fui homem de fugir e, em meio a passos atrapalhados, inesperadamente fui pegando o ritmo. Meia hora depois eu já me sentia um Beto Barbosa. Começava a surgir ali uma química perfeita e pensei: Vai rolar! Tempos depois ela me questionou: “Como você aceita bebida de estranhos numa festa?” Respondi-lhe: “Se você tivesse me dado azeite com prego, eu teria bebido!”</p>
<p>Por volta das três da madrugada, a festa acabou (puxa, tão cedo!). Descobri que morávamos perto, no mesmo bairro. Há apenas cinco quilômetros de onde estávamos. E o que são cinco quilômetros quando você sente a vontade de caminhar junto para todo o sempre? Éramos uma turma de oito pessoas. Saímos a caminhar tagarelando pela madrugada. Uma pequena pausa na rodoviária para comer um... doce! Que coisa estranha, pensei. No caminho, uma carona inusitada: alguém num Del Rey nos convidou a todos. Tratava-se da velha síndrome da solidão nas madrugadas. Emalados feito sardinha, partimos para a última aventura da noite.</p>
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<p>Nos meses que se seguiram vivemos um conto de fadas. Passeios, encontros, festas, viagens, pescarias. Íamos de bicicleta almoçar nos melhores restaurantes da cidade. Havia algo muito forte que nos unia. Eu nem conseguia entender direito. Só vivia. A música sertaneja explodia nas paradas. Certo dia, numa mensagem através do rádio, ela me dedicava uma música simples, mas contextualmente forte: <em>“Tire seus olhos dos meus, eu não quero me apaixonar. Ficou em mim um adeus que deixou esse medo de amar. Eu já amei uma vez e senti a força de uma paixão. A gente às vezes se entrega de mais e esquece de ouvir a razão...”</em></p>
<p>Alguns meses depois, um fato iria mudar nossas vidas para sempre. Um pequeno incômodo na articulação do braço direito, fisioterapia, exames e uma descoberta terrível: Havia um tumor ósseo maligno. Seria necessário amputar todo o braço. Fui a São Paulo acompanhá-la. Perdi um semestre na faculdade. Experiência difícil para quem estava começando a viver.</p>
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<p>Ela carregava todos os elementos para ser infeliz: Havia sido mãe solteira precocemente num relacionamento malfadado, sofria com a separação dos pais, nunca arrumara um emprego formal, nunca conseguira concluir o ensino médio, descobrira um câncer fulminante aos 22 anos de idade tendo que amputar um braço e conviver com o preconceito e, por fim, o tratamento quimioterápico provocara-lhe uma menopausa precoce. Não mais poderia ter filhos. E o que ela fazia? Vivia intensamente cada minuto da vida!</p>
<p>Passado o transtorno maior ela recuperou-se. Voltou a estudar, planejar a vida. Eu estava no meio do curso superior. Engajado no movimento estudantil, respirava a política. Sonhava com uma revolução e juntava dinheiro para ir a Cuba. Começamos a trilhar caminhos diferentes. Certo dia, durante exames de rotina, uma descoberta inusitada: ela estava grávida! O destino, mais uma vez, aproximava nossas vidas.</p>
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<p>Os anos que se seguiram foram de amor intenso e desafio constante. Por diversas vezes, ao falarmos sobre a vida, a doença e o futuro, eu não conseguia conter as lágrimas e ela, em sua infinita tranquilidade, me dizia: calma. Tudo vai passar. Tudo vai ficar bem. Instalava-se ali, uma inversão de papéis. Aquele que deveria confortar estava sendo confortado por aquela que tinha uma sentença de morte.</p>
<p>Quando pensei em candidatar-me a vereador ela foi minha maior aliada, mesmo sabendo que iria dividir a minha atenção com dezenas de outros compromissos. Mesmo debilitada, engajou-se na campanha, pedia votos e ainda chegou a comparecer no dia da eleição para votar em mim. Faleceu um mês depois.</p>
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<p>Ela partiu numa manhã nublada de dois de novembro. Há dez anos. Ainda assistimos à missa do Padre Marcelo Rossi pela TV. Minutos depois, ela balbuciou que não estava sentindo as pernas, os braços. Segurou forte a minha mão e falou: “Muito obrigada por tudo...” As últimas palavras não foram de desespero, mas de agradecimento. Fechou os olhos como uma criança após o enfado de um dia de muitas brincadeiras. Tinha um semblante sereno. Ela via Deus.<span> </span></p>
<p>Durante muito tempo tentei compreender o porquê de tudo isso. Hoje entendo perfeitamente os planos de Deus. Ela precisava de alguém para atravessar os momentos mais difíceis de sua vida. Eu precisava de alguém para me mostrar que a revolução maior não se dá pela força bruta, mas dentro do coração das pessoas.</p>
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<p>Muitos dizem: Puxa, como você foi importante prá ela! O que poucos sabem é o quanto ELA foi importante prá mim. O quanto aprendi com a sua companhia, com seus ensinamentos, e, sobretudo, com seu exemplo. Com ela aprendi a dar mais valor à vida. A lutar por tudo aquilo que acredito. A valorizar cada dia como se fosse o último. A não me desesperar diante do sofrimento mais terrível. A amar sem esperar nada em troca e sem se sentir dono da pessoa amada. A perdoar àqueles que me fazem mal. A me alegrar com as pequenas coisas. A valorizar aquilo que realmente é grande: o amor ao próximo!</p>
<p>Na verdade, ela não se foi, continua perto e dentro de mim. Posso vê-la eternizada no sorriso dos filhos, nas noites em que as estrelas mais brilham, na chuva fina dos finais de tarde, no rosto daqueles que transformam a vida num sinal de esperança.</p>
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<p>Seu filho tornou-se meu filho; sua mãe tornou-se minha mãe e grande amiga; sua família tornou-se a minha família. Apesar de todas as imperfeições, aprendi com eles ensinamentos que, até então, eu só conhecia na teoria: a solidariedade, a partilha, o desprendimento, o valor do encontro, da confraternização, do riso. Valores muito mais sólidos do que aqueles que encontrei na minha própria família certinha, rezadeira, mas, com raras exceções, extremamente egoísta.</p>
<p>A vida seguiu seu curso e, quando menos espero, aparece algum fruto do que plantei. Nem sei se mereço tudo isso. Sou muito feliz, novamente!</p>
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<p>Hoje, pela primeira vez nos últimos dez anos, não pude visitar seu túmulo. Faço, aqui, no entanto, essa pequena homenagem no anseio de que sua memória nunca seja esquecida.</p>
<p>“Márcia, um cheiro bem grande e até qualquer dia...”!</p>
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selma
Portado em 06/11/2010 às 10:23:54
quando o amor é verdadeiro ele jamais morrerá,apenas a pessoa que amamos parte antes de nós.eu tb.tive este verdadeiro amor que agora habita em outra dimensão.