O monstro ecológico

O monstro ecológico

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<div align="left">Era uma tarde de domingo no centro de Picos. Os restos da feira livre do dia anterior alastravam as ruas principais da cidade. Cascas de banana, caixas de ovo, chifres de boi, peda&ccedil;os de jornal... Parecia que um furac&atilde;o havia destro&ccedil;ado tudo. Nas imedia&ccedil;&otilde;es do mercado p&uacute;blico, um cachorro esguio arrastava uma tripa pela Avenida Get&uacute;lio Vargas, disputando o trof&eacute;u com oito urubus famintos. As ruas desertas mais pareciam uma velha cidade de faroeste abandonada.</div> <div align="left">&nbsp;</div> <div>A faxineira da Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Rem&eacute;dios varria alegremente o p&aacute;tio que dentro em breve receberia os fi&eacute;is para a missa das sete, quando uma imensa luz prateada cruzou os c&eacute;us da cidade, circulou a torre da igreja e, em movimentos estranhos, tipo solavancos de carro velho que n&atilde;o quer pegar, aterrissou no meio do cal&ccedil;amento da Pra&ccedil;a Justino Luz.</div> <div>&nbsp;</div> <div>Enquanto a luz se apagava, um ser esquisito apareceu no topo da parafern&aacute;lia. Tinha a cabe&ccedil;a achatada e duas enormes orelhas. A pele recoberta por uma escama espessa e brilhante parecia assumir as cores do ambiente por onde passava. Os olhos grandes e salientes se movimentavam no rosto ao ponto de, por vezes, um ficar sobre o outro. Come&ccedil;ou a girar a cabe&ccedil;a vendo o que havia em volta. Emitia sons estranhos, fazia movimentos constantes, parecia indignado com a sujeira que rodeava seu modern&iacute;ssimo tamborzinho voador.</div> <div>&nbsp;</div> <div>De repente, come&ccedil;ou a girar o corpo a uma grande velocidade. Uma massa de ar rodopiou por entre os detritos e, em pouco tempo, tudo estava limpinho. O lixo fora agrupado em diversos blocos, de acordo com a sua natureza, formando esculturas lind&iacute;ssimas.</div> <div>&nbsp;</div> <div>Uma grande multid&atilde;o j&aacute; se aglomerava ao redor da cena. O medo inicial dava lugar &agrave; cordialidade, dada a boa a&ccedil;&atilde;o praticada pelo monstrengo. Seu Adelson, pipoqueiro, aproximou-se da figura estranha com certa cautela e perguntou: &ldquo;Quem &eacute; voc&ecirc;&rdquo;? De imediato a criatura retribuiu a indaga&ccedil;&atilde;o com outra semelhante e tom cavernoso: &ldquo;Quem &eacute; voc&ecirc;&rdquo;? Parecia que havia ressoado uma enorme panela ac&uacute;stica.</div> <div>&nbsp;</div> <div>O monstro estendeu a m&atilde;o cumprimentando seu Adelson, aproximou-se do mo&ccedil;o segurando-o pela cintura. Num impulso, os dois subiram pelos ares. A criatura vislumbrava espantada a sujeira do Rio Guaribas, o lixo hospitalar, os esgotos a c&eacute;u aberto, o bando de urubus circulando. Enquanto isso conversava com Adelson demonstrando grande habilidade no aprendizado de nossa l&iacute;ngua.</div> <div>&nbsp;</div> <div>Aos poucos a criatura foi explicando a seu Adelson sua eterna jornada de andarilho do espa&ccedil;o. Incont&aacute;veis milhas percorridas preocupando-se exclusivamente com a ecologia do planeta. L&aacute; de cima, sentiu o mau cheiro que a cidade exalava e n&atilde;o se conteve.</div> <div>&nbsp;</div> <div>Perguntou a criatura a seu Adelson se a cidade n&atilde;o tinha prefeito. &ldquo;Ter, tem... mas n&atilde;o liga!&rdquo;, respondeu o pipoqueiro. O alien&iacute;gena dirigiu-se ent&atilde;o &agrave; Avenida Nossa Senhora de F&aacute;tima onde residia o prefeito romeiro. L&aacute; chegando, adentrou o apartamento do dito cujo e, puxando-o pelo fundo das cal&ccedil;as, atirou-o ao espa&ccedil;o junto com todo o lixo da cidade. Em seguida levantou voo em sua nave sob os aplausos de toda a cidade agradecida.&nbsp;</div> <div> <p><font size="2">* Texto publicado originalmente no Jornal de Picos, vers&atilde;o impressa, em 16 de abril de 1999.</font></p> <p><strong><span style="font-size: 10pt">* <em>Jo&atilde;o Benvindo de Moura</em></span></strong><em><span style="font-size: 10pt"> &eacute; professor do Departamento de Letras da UFPI, campus de Teresina, e doutorando em Lingu&iacute;stica pela UFMG. Foi vereador de Picos pelo PT (mandato 2000-2004) e um dos fundadores do Jornal Folha Picoense e da primeira r&aacute;dio comunit&aacute;ria de Picos, a Junco FM. &Eacute; radialista e membro da Uni&atilde;o Picoense de Escritores - UPE. E-mail: </span></em><a href="mailto:jobenvindo@hotmail.com"><em><span style="font-size: 10pt"><font color="#0000ff">jobenvindo@hotmail.com</font></span></em></a><em><span style="font-size: 10pt"> &ndash; Blog: </span></em><a href="http://joaobenvindo.blogspot.com/"><em><span style="font-size: 10pt"><font color="#0000ff">http://joaobenvindo.blogspot.com/</font></span></em></a></p> </div> <div>&nbsp;</div>
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